1 – Morte conselheira
“...
quem é sábio pensa também na morte.”
Eclesiastes 7.4b – NTLH
Morte, quem quer pensar nela?
Quem acorda de manhã
e diz para si mesmo: “Hoje posso morrer”?
Quem leva uma
discussão como esta para ambientes de alegria e descontração?
Quem inicia um
projeto e acrescenta o fator morte além daquele que gerencia uma funerária?
Quem ama a morte ou
a romanceia a não ser os poetas e os loucos?
Ed René Kivitz diz
que “a morte não é uma passagem sublime para um plano mais elevado, a morte não
é bonitinha: a morte é minha inimiga. Não é possível adocicar a morte, suas
feições nunca cabem na moldura da beleza... a morte não nos cai bem”.[1]
A morte não nos cai
bem porque “Deus implantou nos homens um senso de eternidade para que eles
pensem que vão viver para sempre... se os homens soubessem quão próximo está o
dia de sua morte não construiriam uma casa”.[2]
Quem ousaria iniciar
um projeto hoje sabendo que vai morrer amanhã? É justamente o senso de
eternidade que nos impulsiona a lutar, estudar, formar-se em uma profissão,
namorar, casar, etc.
Logo, a morte é a
destruição dos sonhos e projetos, por isso, por mais que amemos Jesus e queiramos
estar com ele, não queremos morrer.
Ouvi muitas vezes um
antigo pastor[3] em
Campinas contar a história de um culto fúnebre que ele realizou. Ao lado do
caixão do falecido estava sentada uma irmã com seus noventa anos segurando as
mãos de sua neta. No meio do sermão, o pastor perguntou: “Quem dentre nós não
gostaria de estar no lugar de nosso irmão que partiu e já esta com Cristo?”. A
neta, não entendendo que era uma pergunta retórica, disse para a avó: “Levanta
a mão, vó!”, ao que a avó respondeu: “Está bestando, menina, levanta a mão
você!”.
A morte é horrível.
Ela é até compreensível quando vem para levar alguém que já está muito idoso, então
é vista como algo natural, dentro do processo de nascer, viver e morrer, mas
quando ela vem durante a infância, na juventude ou na vida adulta – em idade
considerada socialmente ativa –, é vista como uma ruptura nessa continuidade,
além de ser considerada antinatural, pois se deseja que as crianças e os jovens
vivam até se tornarem idosos.
O fato de a morte
ser horrível, nossa inimiga,[4] não nega
que, para aqueles que continuam a viver, ela é pedagógica.
Para Rubem Alves, “é
preciso tornar-se um discípulo da Morte. Pois ela nos dá lições de vida, se
acolhemos como amiga. Para recuperarmos um pouco a sabedoria de viver seria
preciso que nos tornássemos discípulos e não inimigos da Morte. Mas para isso
seria preciso abrir espaço em nossas vidas para ouvir a sua voz”.[5]
Salomão chama de
sábios aqueles que ouvem a morte e aprendem com ela, de modo que negar a morte
não é prudente nem sábio. São os tolos que vivem em divertimentos,[6] sem
pensar no fim da vida. Para estes, pensar na morte é algo triste e sombrio,
próprio de pessoas depressivas e taciturnas. Para os tolos, pensar na morte tem
um efeito destrutivo e perigoso, estes, como diz
Sêneca[7], “fica miseravelmente à
deriva entre o medo da morte e as tormentas da vida, não querendo viver, não
sabe morrer. Desse modo, torna tua vida agradável abandonando toda a
preocupação com ela (morte)”.
Uma análise de
estudos publicada na versão on-line
da edição de maio de 2012 do periódico Personality and Social Psychology Review
demonstra que, em vez de ter um efeito destrutivo e perigoso, a consciência
sobre a mortalidade pode, na verdade, melhorar a saúde física e ajudar a pessoa
a priorizar seus valores e objetivos. “Alguns estudos sugeriam que a
consciência da morte é simplesmente uma força sombria de destruição social.
Existe pouca compreensão de como a consciência sobre a morte, sutil e diária,
pode ser capaz de motivar atitudes e comportamentos que minimizem os danos e
promovam o bem-estar”, diz Kenneth Vail, da Universidade de Missouri e
coordenador do estudo.[8]
Kenneth Vail usa
como exemplo o atentado de 11 de setembro. “As pessoas ficaram tocadas pela
violência do atentado e lembraram como suas vidas eram frágeis. O fato teve
inúmeras consequências ruins, mas pesquisas mostraram que ele também levantou
valores como esperança e vontade de mudar”, explica[9].
Um estudo conduzido
por Matthew Gailliot e publicado no Personality and Social Psychology Bulletin
em 2008 indicava que só o fato de estar fisicamente perto de um cemitério
afetava o quanto uma pessoa se sentia motivada a ajudar outra.[10]
As pesquisas
confirmam o que Salomão escreveu: pensar na morte é eficaz e benéfico, pois
“com a tristeza do rosto se faz melhor o coração”.[11]
Os que não pensam na
morte, ou vivem como se fossem imortais, vivem uma vida mesquinha, egoísta e
soberba. Concordo com Rubem Alves: “Houve um tempo em que o nosso poder perante
a morte era muito pequeno. E por isso os homens e mulheres dedicavam-se a ouvir
a sua voz e podiam tornar-se sábios na arte de viver. Hoje, o nosso poder
aumentou, a Morte foi definida como inimiga a ser derrotada, fomos possuídos
pela fantasia onipotente de que nos livramos de seu toque. Com isso, nós nos
tornamos surdos às lições que ela pode nos ensinar. E nos encontramos diante do
perigo de que, quanto mais poderosos formos diante dela (inutilmente, porque só
podemos adiar...) mais tolos nos tornamos na arte de viver. E, quando isso
acontece, a Morte que podia ser conselheira sábia, transforma-se em inimiga que
nos devora por detrás”.[12]
Tenho praticado isso
e orientado as pessoas a praticarem, o que na psicologia é chamado de “Teoria
do gerenciamento do medo”, para que haja uma mudança na interação conjugal e
familiar.
Desde que me entendo
por gente, e lembrando-me de todos os casamentos em que estive, não me recordo
de ter ouvido alguém falar da morte, a não ser na célebre frase “até que a
morte os separe”. Na verdade, todas as homilias que ouvi sobre morte foi em um
funeral.
Nenhum oficiante
quer falar de morte numa cerimonia de casamento, temos assuntos melhores, mais
divertidos. Alguns oficiantes querem ensinar em vinte minutos o que os noivos
não aprenderam durante toda a sua vida, ou, em um provérbio bem popular,
“querem ensinar o padre a rezar a missa”. Para esses, não há nada mais
contraditório do que falar do fim para quem está começando, e penso que não há
erro maior do que este!
Aqueles que estão
começando a vida conjugal olham para frente, projetam, sonham, fazem mil planos
e normalmente não levam em conta as dificuldades que enfrentarão. Pensando que
são imortais, estão suscetíveis a todos os tipos de erros no relacionamento a
dois, tais como protelar assuntos relevantes para a comunhão conjugal e apressar
coisas irrelevantes. Mais uma vez usando um provérbio popular, “colocam o carro
na frente dos bois”. Daí o fato de particularmente achar que o assunto morte
deve estar em evidência na homilia pastoral.
Quem está diante de
um esquife velando um corpo olha para o passado, analisa a vida. É ali, diante
de alguém que morreu, que temos nossos arrependimentos, que pensamos em tantas
coisas que poderíamos ter feito de maneira diferente, tantas palavras que
poderíamos ter riscado do nosso vocabulário e tantas outras que poderíamos ter
acrescentado.
A belíssima letra da
música “Epitáfio” diz: “Queria ter aceitado as pessoas como elas são.../ Devia
ter complicado menos, trabalhado menos/ Ter visto o sol se pôr/ Devia ter me importado
menos com problemas pequenos/ Ter morrido de amor”[13], palavras ditas – na mente do compositor – por alguém que já
morreu e, pensando na vida que perdeu, expressa seus arrependimentos.
Todas as vezes que
estive em um funeral, reparei que todos que chegam diante do esquife levam suas
mãos ao rosto e lançam um olhar introspectivo, como que se perguntando: o que
estou fazendo de minha vida? Como disse Rubem Alves, “a Morte tem o poder de
colocar todas as coisas em seus devidos lugares”.[14]
Creio que é por isso
que Salomão disse: “É melhor ir a uma casa onde há luto do que ir a uma casa
onde há festa, pois onde há luto lembramos que um dia também vamos morrer. E os
vivos nunca devem esquecer isso.”[15] Não
é justamente quando pensamos que somos finitos, mortais que pensamos em mudar?
“Quem é sábio pensa
também na morte.”
O sábio entende que
a qualquer momento pode morrer, de modo que vive cada dia como se fosse o último,
trata as pessoas ao seu lado como se fosse a última vez, fala cada palavra como
se fosse a última, vive cada momento ao lado do cônjuge como se fosse o último.
O sábio entende que
desde o momento em que nascemos estamos morrendo,[16]
como disse Sêneca, “tanto o velho como o jovem
precisam encará-la – pois não somos chamados por faixa etária[17] -, por isso tem a
consciência que pode não ter a pessoa amada ao seu lado amanhã. Para não ter
arrependimentos, ele vive plenamente o hoje.
Falar sobre a morte
não é fácil, é assunto para loucos e poetas. Todavia, na minha experiência
pastoral, tenho visto muitas pessoas sofrendo com o luto, deixando de viver
para apenas existir, uma existência dura e dolorosa. Para muitos, o peso do
luto é sufocante. Há o peso da “culpa do sobrevivente”, em que o enlutado sente
culpa pelo alívio de estar vivo, e a autocensura, em que o pesar é marcado por
autoacusação persistente.[18]
Tendo a experiência
pastoral de acompanhar muitos sepultamentos e a experiência familiar por
ocasião do falecimento de minha mãe, propus a pensar, estudar e então escrever
sobre esse assunto sob uma óptica familiar, de modo que este livro não é um
tratado de tanatologia,[19]
mas sim uma visão pastoral sobre a interação familiar antes que a morte venha. Assim,
quero convidar você a estar comigo e nas próximas páginas refletir sobre esse
assunto e chegarmos a uma conclusão: devemos mudar o que somos, o que falamos,
como agimos ou as nossas atitudes para com o cônjuge, família e nosso próximo
não precisam ser mudadas?
[1]
KIVITZ, Ed René. O livro mais
mal-humorado da Bíblia. São Paulo: Mundo Cristão.
[2]
WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes.
Editora Maayanot.
[3] O
pastor Marinezio Soares foi presidente da Assembleia de Deus em Campinas, SP, por
muitos anos.
[4] O último
inimigo que será destruído é a morte (1 Coríntios 15.26 – NTLH).
[5]
ALVES, Rubem. A morte como conselheira. In: CARSOLA, R. M. S. (org.). Da
morte: estudos brasileiros.
São Paulo: Papirus.
[6]
“Quem só pensa em se divertir é tolo” (Eclesiastes 7.4a – NTLH).
[7]
Edificar-se para a morte – Das cartas morais a Lucílio. Editora Vozes, 2016.
[8] http://veja.abril.com.br/noticia/saude/pensar-sobre-a-morte-pode-ser-saudavel
[9] http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI304358-17770,00-PENSAR+NA+MORTE+PODE+SER+BOM+PARA+VOCE.html
[10] http://revistagalileu.globo.com…
cit.
[11]
Eclesiastes 7.3 – ACF.
[12]
ALVES, Rubem, op. cit.
[13]
Composição de Sergio Britto, interpretação da banda Titãs.
[14]
ALVES, Rubem, op. cit.
[15]
Eclesiastes 7.2 – NTLH.
[16]
BROWN, F. H. O impacto da morte e da
doença grave sobre o ciclo de vida familiar.
[17]
Edificar-se para a morte – Das cartas morais a Lucílio. Editora Vozes, 2016.
[18]
MILANO, José R. L. Subjetividade e
psicodinâmica nos destinos de um luto conjugal.
[19]
Tanatologia é a teoria ou estudo científico sobre a morte, suas causas e
fenômenos a ela relacionados.
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