Uma divindade se apresenta a
Moisés, dizendo: “Eu sou o Deus de seu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque,
o Deus de Jacó” (Êx 3.6). Isso significa que é possível identificar que a
divindade que se revelou a Abrão foi a mesma que se revelou a Isaque e também a
Jacó, pois a natureza de tal revelação obedece a uma coerência unívoca. A
partir dessas revelações, os patriarcas de Israel vão conhecendo o seu Deus e
aos poucos vão percebendo que ele é absolutamente distinto dos deuses das
nações vizinhas. Não demora para que os outros deuses sejam considerados ídolos
e que o Deus de Israel se afirme como único Deus. O Shemá, trecho da Torá que
fundamenta o monoteísmo judaico, começa com as palavras: “Ouve, Israel, Adonai
nosso Deus é Um”.
O segundo mandamento do
Decálogo proíbe a fabricação de ídolos e imagens de qualquer coisa no céu, na
terra ou debaixo da terra. A proibição inclui o próprio Deus. A inteligência do
mandamento sugere que Deus é incomparável e não pode ser definido ou limitado à
semelhança de suas criaturas. Mais do que isso, Deus não pode ser decodificado
a ponto de se tornar passível de controle e manipulação de seus adoradores – o
que compreendemos, controlamos. Na verdade, os ídolos, feitos por mãos humanas,
é que servem aos interesses e se submetem aos caprichos daqueles que os
fabricam.
A pior idolatria é aquela
que resulta da equivocada compreensão do caráter de Deus, isto é, quando ao
nome de Deus é associado um caráter e uma identidade que não são compatíveis
com a revelação que o próprio Deus faz de si mesmo. Jesus corrige seus discípulos
Tiago e João, que desejavam a destruição de um povoado samaritano, afirmando:
“Vocês não sabem de que espécie de espírito vocês são” (Lc 9.55). Também os
discípulos no caminho de Emaús foram corrigidos por Jesus, pois foram
igualmente incapazes de ligar o nome à pessoa: o Messias real era diferente do
Messias imaginado. Eis a versão mais sofisticada de idolatria: atribuir a
identidade errada ao nome certo. Não são poucos os cristãos contemporâneos
passíveis do mesmo pecado: transformar Deus em ídolo; confundir o Deus de
Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó, o Deus de Jesus, com os deuses
pagãos.
Deus é transformado em ídolo
quando ocupa o imaginário das pessoas como o mais poderoso dentre todos os
deuses. O monoteísmo afirma que existe apenas um Deus, e não que Deus é o deus
mais poderoso. O primeiro mandamento – “Não terás outros deuses” – não é uma
proibição à adoração de outros deuses, mas uma afirmação de que não existem
outros deuses. Na verdade, os outros deuses são produto da mente humana, isto
é, ídolos. Toda vez que Deus é comparado com “outros deuses”, mesmo para que
seja destacado como o maior e o melhor, ele é reduzido à categoria de ídolo.
Deus é único.
Deus é transformado em ídolo
quando é confinado aos limites de imagens, locais, pessoas, ritos, símbolos,
seres ou qualquer outra coisa que dê a ele uma medida, pois Deus é o Ser-em-si,
não sujeito a tempo, espaço e modo. Deus é Espírito.
Deus é transformado em ídolo
quando se pretende que o relacionamento com ele seja destituído de quaisquer
implicações morais, pois isso equivale a atribuir a Deus uma categoria de
neutralidade e, portanto, despersonalizá-lo. Deus é Espírito pessoal.
Deus é transformado em ídolo
quando o relacionamento com ele é fundamentado em relações de mérito e demérito,
pois nesse caso o fator determinante do relacionamento é o ser humano, que faz
por merecer ou deixa de merecer, isto é, Deus apenas reage. Deus é gratuidade.
Deus é transformado em ídolo
quando o relacionamento com ele é fundamentado em relações de causa e efeito,
pois isso implica confinar Deus às regras de um mecanismo que pode ser ativado
ou desativado, e nesse caso se pretende manipulá-lo por meio da descoberta dos
botões que o fazem funcionar. Deus é incondicionado.
Deus é transformado em ídolo
quando as expectativas que se tem a respeito dele giram ao redor de questões
meramente circunstanciais, pois o reino de Deus não é comida nem bebida, ou
seja, não está restrito às questões efêmeras e materiais. Deus é Eterno.
Deus é transformado em ídolo
quando é submetido a obrigatoriedades determinadas pela conveniência humana,
pois deixa de ser um fim em si mesmo e é transformado em meio para um fim
maior. Deus é soberano.
Deus é transformado em ídolo
quando, em seu nome, se faz exigência de sacrifícios humanos, pois ele não se
alimenta de vidas humanas, sendo ele mesmo o doador e mantenedor da vida. Deus
é amor.
Deus é transformado em ídolo
quando é submetido a qualquer regra de qualquer ordem. Deus é incontrolável.
Deus é transformado em ídolo
quando se torna objeto de discussão, em detrimento de objeto de devoção e
paixão, o que pode acontecer, inclusive, em relação a este texto, que fica
dizendo que Deus é isso e aquilo. Deus é indiscutível.
• Ed René Kivitz
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